18 de março de 2024

A chamada do Menino Jesus

Habituei-me a não ficar milionário com o sorteio do euromilhões nas noites de sexta-feira, apesar dos dez euros que possa ter investido em apostas. De forma que menos ainda o espero, a coberto de uma chamada anónima, que me possa chegar a qualquer momento, não sei de onde e que, por princípio, não atendo. E, mesmo que a chamada me chegue atrás de um número que não conste da minha curta lista de contactos, fico ainda mais hesitante do que receoso. Nunca imagino que pechincha me poderão vir oferecer, desde as férias de sonho nos antípodas, com tudo incluído, até aos eficazes e únicos produtos para o cabelo, capazes de fazer renascer na mais polida bola de bilhar a cabeleira que, aos vinte anos, teria o saudoso beatle John Lennon.

Era sexta-feira, era meio da manhã e atendi a medo, procurando identificar o chamador. A resposta recolheu-me o sorriso e agudizou-me o receio: o Menino Jesus. Entre a surpresa e o espanto, tolheu-se-me a voz mas, apesar disso, fui capaz de perguntar-lhe o nome do pai e o local de nascimento, para poder confirmar-lhe a identidade. Perguntas simples para respostas simples, a que retorquiu de forma surpreendente: não responderia a nada e, havendo perguntas, só a ele estaria reservada a iniciativa de as fazer. Temi uma qualquer intromissão, uma usurpação do nome, uma apropriação indevida de identidade. Sendo-se jovem e inexperiente nestas matérias, não é por se ser filho de Deus que se fica imune à mentira e à fraude. A ascendência e a linhagem, apesar de tudo, não colhem em muitas situações. Mesmo que se usem programas de segurança e se conte com a superior proteção divina. Não sei se consegui dizer-lho, mas creio que o tentei. Mas senti que se calava e que, pelo menos, manifestava alguma preocupação e se protegia atrás de um silêncio breve. O que fez com que a conversa terminasse ali, entre a desconfiança e o receio. Depois, ainda voltou a ligar-me no dia seguinte mas eu, não recomposto da surpresa e ainda desconfiado, não ousei sequer arriscar e atender-lhe a chamada. O pai que fizesse o favor de o aconselhar e de lhe indicar o caminho do diálogo, para que eu readquirisse a confiança necessária para o atender.

Voltou a ligar-me uma semana depois, mais cordato, trazendo maior clareza na voz e adivinhei-lhe um certo brilhozinho nos olhos. Com o diálogo mais solto e menos receoso da surpresa, não hesitou em dizer-me de onde e de quando me conhecia, talvez depois de o ter perguntado a seu pai, que tudo sabe e que está sempre em todos os lugares. E disse-me porque razão me deixara o sapato vazio ao canto da lareira, passando-me ao largo da porta, há cinquenta anos atrás, quando mais ingentes tarefas de sobrevivência da espécie tinham reclamado a sua atenção num outro canto do mundo, onde ainda sobrava a sede à fartura da água. E tal tinha sido, de facto, uma atendível razão imperiosa e de força maior. Afinal mesmo a omnisciência e a omnipresença têm os seus limites, mesmo quando se trata do Menino Jesus, ainda que ele seja o único filho de Deus.

16 de março de 2024

Sortilégio bissexto

Não me lembro de naqueles anos ter tido mais de um par de sapatos. Quando o desgaste já não justificava que levassem mais umas meias solas, em casa diziam-me para passar no senhor Hermínio para tirar medidas. O senhor Hermínio – um homem de quem toda a gente gostava e de quem tenho saudades – fazia-me assentar o pé no chão, sobre um pedaço de papel de embrulho e, com um lápis, desenhava-lhe o contorno, fazia medidas com uma fita métrica e tirava apontamentos. Depois, não sei quanto tempo depois, entregava-me uns sapatos novos, a brilhar com a graxa aplicada de fresco, que me incomodavam os calcanhares enquanto os pés se não habituavam à novidade e ao novo feitio que a forma desenhara.

Apesar disso, mesmo sendo pouco leitor de contos de fadas, por falta de fadas e de orçamento, eu acreditava no Menino Jesus. E em casa chegava a ter pena dele quando me sentava à lareira e via as cavacas de pinho seco crepitando na fogueira e a fuligem acumular-se, muito negra, pela chaminé acima, mesmo ao lado da panela de ferro fundido, com três pernas, que minha mãe mantinha sempre ao lado das brasas, cheia de água quente. Porque o imaginava descendo por ela abaixo, durante a madrugada, imaculadamente vestido de branco, carregando às costas o saco dos presentes, a fazer o seu trabalho de distribuição de roupas novas e, porventura, a deixar um ou outro brinquedo aos mais afortunados. Para, na manhã seguinte, lá estar ele na missa, nas mãos do senhor prior, de pés lavados, a oferecer-se ao beijo devoto dos fiéis. Aí, na missa, chegou ele a ser-me quase indiferente, por não atender aos meus desejos e deixar-me sempre vazio o sapato que na noite anterior, confiante, lhe deixara à espera, a um dos cantos da lareira. Sem motivo que o justificasse e que eu compreendesse. Tanto mais que eu me portava bem, não dava erros no ditado, sabia a tabuada, fazia os recados a minha mãe e era elogiado pela professora.

Com os anos eu fui levando tareia pela vida fora, habituando-me a não acreditar nem no Menino Jesus nem no Pai Natal, uma versão mais moderna, toda vestida de vermelho, viajando num trenó – que nunca ninguém viu – puxado por renas ao longo de paisagens geladas, desde a Lapónia – que parecia não figurar em mapa nenhum – até ao trópico de Câncer ou mesmo até ao Equador, ali mesmo ao lado das ilhas de São Tomé e Príncipe. Mas, à falta de lareira e da fogueira crepitando na noite fria, continuei a formular-lhe pedidos em pensamento, até saber o seu endereço de correio eletrónico e poder enviar-lhe uma mensagem pessoal. Sim, sem admiração, porque o Menino Jesus também se modernizou e aderiu às novas tecnologias. Frequenta centros comerciais, usa telemóvel, tem conta de correio eletrónico e não cumpre horários. Até se atrasa com frequência. E deve ver novelas e saber as notícias pela televisão, penso eu. Com o atraso, acabou por me ligar apenas este ano, quando o mês de Janeiro já ia a meio, para me falar no presente que não me deixou no sapato há mais de cinquenta anos. Ainda nem sei bem se acredite, isto deve ser sortilégio do ano bissexto. Mas na dúvida, mesmo assim, acho que no próximo Natal, reconciliado com ele, vou voltar à missa do galo, a beijar-lhe o pezinho limpo e a fazer o sinal da cruz.

15 de março de 2024

A procura

Depois da catástrofe os destroços que ficam formam o labirinto em que nos perdemos. Não adianta utilizar a primeira saída como se fosse a única, como se ela fosse a que nos leva à libertação e ao rumo certo. É preciso parar, deixar baixar a tensão, esperar que se normalize o ritmo cardíaco, pensar. Usar a razão. Nós somos seres racionais mas não o sabemos e, não o sabendo, não o praticamos. Construir um projecto, fazer um programa que nos ajude a encontrar a saída, que nos leve a dar com o caminho. No meio das ruínas sobram poucas referências, um nome, um local, uma data. Ou pouco mais do que isso, uma inscrição numa pedra ou num resto de parede. Sempre curtos, sempre vagos, sempre poucos. A tecnologia precisa de dados mas não os inventa. Não nos dá as coordenadas do sítio onde mora a fortuna e onde a nossa vida se cruza com a estrela polar.

Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil por acaso, mas o acaso não foi por falta de programa. O programa foi minucioso, desceu ao mínimo detalhe, foi laboriosamente construído. Reuniu muitas e vastas inteligências. Assim também foi a procura da saída do labirinto e o ensaio de navegação no escavado vale do Douro, entre as arribas e os ninhos das águias. A resistência entre os rochedos e a procura da nesga de sol, a descoberta do norte magnético. A certeza de haver fronteira e de estarmos do nosso lado, o rechaçar do invasor estrangeiro, obter certificação para a nossa identidade. Prosseguir o nosso destino histórico, perseguir a felicidade, encontrá-la, hesitar, dar-lhe a mão. Caminhar a seu lado, abraçá-la. Olhá-la nos olhos, ser seu cúmplice e seu amante, habitar o seu mundo e a sua casa.

Do Tejo partimos, ao Tejo havíamos de voltar. À torre de Belém ou a uma qualquer baía da margem sul. Mas mesmo o mais detalhado programa precisa de um bafejo de sorte, de um sopro sobrenatural, de um pequeno trunfo escrito nas estrelas. Que nunca se sabe se chega, ou quando chega, ou como chega. E se chega, quando chega, não se sabe como veio ou de onde veio. Mas sente-se. E é essa certeza, esse pequeno sopro que enfuna as velas ao barco, que aponta a proa ao cais de destino, que muda o curso da história. É ele que nos faz fundear nas praias da Índia, de águas calmas e azuis, de areias finas e douradas. Onde não há espaço para estaleiros. É esse bafo de sorte que nos reconcilia com o destino, que nos leva ao passado, que nos deixa cumpri-lo desde que o perdemos. Como se nada tivesse acontecido, como se nada tivesse mudado. Como se toda a vida estivesse sempre para diante, sem nada se ter perdido. Como se tudo fosse sonho, como se tudo fosse futuro.

8 de março de 2024

Dia Internacional da Mulher

Assinala-se hoje o Dia Internacional da Mulher com o qual, obviamente, sou plena e inteiramente solidário, sem constrangimentos e sem considerandos. Concordando nos propósitos, desafino no conceito. E tento explicar por quê.

A Mulher não deveria ter de lutar por aquilo que, por direito natural, lhe pertence. Ela não deveria precisar de exigir ser igual: porque ela é igual. Ela é igual, ponto final! Não deveria precisar de pugnar por ter igual instrução, por ter as mesmas oportunidades, por ter idênticos salários. Tudo são direitos naturais a que deveria ter acesso, sem restrições, sem filtros e sem necessidade de luta. Nenhuma Mulher é mais igual a mim quando se lhe refere o género. Senhoras deputadas e senhores deputados é rigorosamente igual a senhores deputados. Porque as senhoras deputadas devem ter tido o mesmo direito a figurarem nas listas de candidatos, a ser eleitas pelos mesmos votos, a ser tratadas de forma idêntica. Falando quando entendem dever falar, dizendo o que acham dever dizer, defendendo as causas que julgam ser justas. E isso não precisa de género, não tem género, não deveria exigir luta. Impõe apenas igualdade. É igualdade!

Neste dia junto todas as Mulheres do mundo numa só Mulher. A Mulher que foi todas as Mulheres da minha vida e todas as Mulheres de todas as vidas, minhas ou alheias: minha Mãe! A Mulher mais sábia que conheci, a Mulher mais sabedora que que houve no mundo, A Mulher mais simples que toda a simplicidade que varreu o planeta. A Mulher mais sensata pelo mais largo conceito por acaso inscrito nas enciclopédias. A Mulher que superlativamente venero, de mãos erguidas para o infinito, em que revejo toda a grandiosidade do género, todo o génio da espécie, todo o largo âmbito da igualdade. Mulheres de todos os recantos do mundo, senti-vos hoje, cada uma por si e inteiramente, como minha Mãe. Senti-vos nesse patamar! É nessa condição de igualdade que hoje e sempre vos venero a todas!

6 de março de 2024

Que havia de ser de mim

Que havia de ser de mim? Se o mundo inteiro desabasse num instante e eu amanhecesse perdido num dia baço de Dezembro, sem que houvesse calendário. Com o sol encostando-se à fatalidade de capricórnio, numa lenta manobra de inversão de marcha, regressando ao trópico de câncer. Coberto pela vasta escuridão da noite e pelo pesado silêncio do Kalahari e das finas areias em brasa que gelam pela madrugada, sem temperaturas com que pudessem ser medidas. Como achar o firmamento e cobri-lo de estrelas, alinhar constelações e dar um nome ao cruzeiro do sul. Tatear o planeta para lhe adivinhar a forma, senti-la redonda e andar para diante para chegar sempre ao mesmo lugar, sem ter consciência disso nem de nada. Saber da inutilidade de todos os lugares e de todos os momentos, sem noções de geografia e sem perceção do tempo, sem relógios nas paredes e sem sinos nas torres das igrejas, por não haver nem paredes, nem relógios, nem igrejas. Perder-me no vazio porque dele é todo o universo em que não há ainda pontos cardeais, nem sentido de orientação, nem vento norte. Como, assim, dar sentido à palavra descoberta, sem procura?

Se houvesse tempo teriam passado muitos anos e se houvesse calendário teria podido contá-los, mesmo que fosse pelos dedos e eles não chegassem. Assim não houve quem me pudesse dizer nada, quem me pudesse dar um palpite, quem me ajudasse. Ainda não havia jogos nem apostas e o teu nome repetidamente pronunciado perdia o sentido e a fonética, sem ritmo nem melodia. Não havia sequer vales, ou rios, ou montanhas onde eu pudesse acomodar um nome de terra pequena perto da fronteira. Não havia fronteiras nem terras que tivessem nomes ou a que estes se pudessem ajustar. Tudo ficava longe, do outro lado do mundo, onde apenas se chegava por engano, sem rota e sem rumo. Onde não era possível encontrar ninguém que não tivesse endereço ou não fosse portador de passaporte. Não desesperei por uma questão simples: o desespero era um estado de espírito ainda por catalogar. Nem sequer Freud tinha nascido para dar razão a muita coisa e as coisas não tinham um nome que já lhes tivesse sido atribuído.

Depois abriu-se uma estreita nesga no vazio, entrou um débil raio de luz, e deram-lhe um nome e dele ficou um pequeno rasto, quando houve noção do que era vazio. Uma sombra muito curta, distante e frágil que foi abrindo um orifício de esperança onde não cabia a ponta de uma agulha. E o conceito entrou-me pelos olhos como se fosse um pássaro e tiniu a um canto da memória que nascia no fundo da cabeça. E com a invenção da luz foi-se povoando o universo, foram-se dando nomes às coisas, houve animais e árvores e mares e distâncias. Criaram-se deuses e alargou-se o espaço. Inventou-se a roda e descobriu-se o fogo e com ele se sentiu que o coração batia e que às vezes a fogueira aquecia os pés e acelerava o coração. Houve distâncias, do longe se fez perto e dos passos se fez caminho. E do caminho se fez procura e da procura nasceu a descoberta.