25 de abril de 2024

25 de Abril mais 50

Parabéns minha querida Dra. Dorinda Agualusa. O primeiro objetivo do 25 de Abril está alcançado: trazê-la até aqui, à celebração do seu 100º aniversário. Por isso me curvo à sua frente, com a emoção a ameaçar-me as lágrimas, para entregar-lhe, simbolicamente, um pequenino ramo de orquídeas. E a dizer-lhe, de novo, da minha gratidão de sempre e para sempre. Cem anos são um marco especial, a inscrever naquele penedo ao fundo do quintal do seu canto de paraíso, com o mar ao fundo, na Casa do Cruzeiro. A assinalar esta data e o seu centésimo aniversário.

O outro 25 de Abril foi há 50 anos, quando um regime já senil e obsoleto, ameaçando ruína, se desmoronou às mãos de meia dúzia de capitães que, para isso, de facto, não precisaram nem de grande arsenal nem de muita heroicidade. Ou que foram heróis mas pelos propósitos, pelas intenções e pelo sonho com que realizaram o golpe. Entretanto, ao longo do tempo, foi-se vulgarizando a questão de sabermos onde estávamos no 25 de Abril, não importa com que intenção. E, passado este meio século, é avisado e aconselhável que pensemos, cada um de nós, à margem dos políticos que nos governam mas com eles: onde estamos depois destes 50 anos. Depois do capitão Fernando Salgueiro Maia ter plantado em frente ao Quartel do Carmo o girassol da liberdade, à sombra da qual hoje nos acolhemos.
O girassol cresceu, ganhou porte, criou folhas, abriu uma larga e bela corola. Tapou algumas misérias absurdas e destapou outras, deixou satisfeitos uns e insatisfeitos outros. Temos um regime democrático, com eleições regulares e livres, em que todos podem ser eleitores e, com algumas condições, também eleitos. Eliminaram-se algumas distorções medievais e deixaram-se aumentar outras, de todo inaceitáveis. Há liberdade de expressão, condição necessária para que falemos de democracia mas, de todo, não suficiente para que a tenhamos. O país tem crianças que, de manhã, vão para a escola sem pequeno-almoço, tem milhares de jovens que não completam o ensino obrigatório, tem adultos que vivem ao relento, nas portadas das ruas das cidades, tem velhos indefesos e abandonados à sua velhice e à sua desgraça. Tem jovens a que se não oferece oportunidade de emprego, se não garante rendimento digno, se não dá a possibilidade de criar família, de ter uma casa e de ter e educar filhos. Tem uma imensa pobreza que se alarga, sem uma escala que a possa medir e que cresce sem combate e sem freio. Não se alarga a proteção aos mais vulneráveis, não se lhes dão maiores benefícios ou algum horizonte. A falta de habitação não é um problema, é uma tragédia. O cidadão comum não vislumbra no seu dia-a-dia esperanças de melhor futuro.

Não há democracia com tão graves problemas por resolver. E a sua resolução não é uma questão individual, é uma tarefa coletiva que diz respeito a todos. O país, coletivamente, será mais rico se se produzir mais e maior riqueza. Mas teremos também muito menos e muito menor pobreza se a riqueza existente for melhor distribuída. E menos e menor pobreza significará mais e melhor democracia. Não se fala nisso ao fim de 50 anos. É importante, é necessário, é imperioso que se fale. Para mais e para melhor democracia!

19 de abril de 2024

A primeira margem do rio

O pouco que sei aprendi-o com minha Mãe, tudo o que não sei aprendi sozinho. Aos oito anos eu só sabia que aquela era a primeira margem do rio, mas não sabia que o rio tinha mil quilómetros. Não sabia onde era a sua nascente. Mas sabia que iria desaguar no mar, sem saber onde era o mar ou, se calhar, também ainda não sabia. Sabia que o rio tinha uma jangada para o atravessar, que os homens, à força de varas compridas e de braços faziam encostar a um pequeno cais onde esperava uma camioneta Internacional K-11. Pôr a camioneta a bordo era uma tarefa de homens de ciência, demorava uma eternidade, até que minha Mãe me chamasse para o almoço. Para, talvez, me dar peixe frito e salada para comer e quinino para tomar, por causa do paludismo.

Logo depois de almoço a camioneta estava a bordo com precisão milimétrica, metade dos homens orientando de um lado, a outra metade orientando do outro, mais um bocadinho para a esquerda, menos um bocadinho para a direita, em frente devagarinho, para, em frente, volta a parar, isso. A cantilena muito lenta, muito arrastada, da qual, finalmente, sobressaía a voz poderosa de tenor: alto! Os homens subiam também todos a bordo, pegavam nas varas compridas, de pés descalços, os peitos negros exibindo o poder dos músculos e o preto da pele. Desamarravam as cordas grossas que prendiam a jangada aos troncos de árvore enterrados na terra seca. A jangada balançava suavemente ao sabor da corrente, parecia ameaçar ir rio abaixo, os homens fincavam as varas ao fundo do rio, o coro do esforço enchia o ar: huuuuumm. O balanço sustinha-se, a jangada contrariava a corrente, arrastava-se uma mão-travessa a subir o rio. A monotonia do coro durava uma hora, primeiro subindo o rio alguns cem metros, ao longo da margem. Depois empurrando a jangada para o outro lado, de uma outra margem tão distante que não existia, depois aproveitando e controlando a corrente para chegar ao destino.

Nesta primeira margem, com um pequeno resto de tábua, eu escavava a terra húmida sob a sombra larga das mangueiras. Cada punhado de terra trazia duas ou três minhocas contorcendo-se, tentando libertar-se da luz que lhes cegava os olhos que não viam. Eu aprontava o anzol na ponta de um fio com dois metros, preso a uma cana mal aparada de outros dois. Cravava-lhe na ponta a primeira minhoca, que se contorcia sempre, sem ai nem ui, esperneando, calada. Atirava o anzol ao rio e a rolha ficava a boiar, à superfície, acompanhando lentamente a corrente do rio e o movimento da jangada a meio dele. A meio do rio os homens continuavam com o seu esforço e o seu coro, arrastando a jangada e a cantiga, de troncos nus rebrilhando ao sol. Eu fixava o olhar no sol e na distância, preso à margem, à sombra das mangueiras, seguindo a rolha que flutuava e a jangada que carregava a camioneta. E começava a divisar um grande girassol que emergia no fundo do horizonte, ereto e poderoso, de tronco largo e folhas muito verdes, com uma corola tão brilhante e amarela como o sol escaldante do meio-dia. Era o sonho que se abria à volta do sol. Durante cinquenta anos o girassol cresceria sem rega e sem cuidados, fortalecendo-se nesta primeira margem do rio. O rio era o Kwanza, farto, largo, imenso e forte, grande de mil quilómetros, arrastando-se lentamente a caminho de Nossa Senhora da Muxima. Saravá!

12 de abril de 2024

O girassol do desassossego

Bem, antes de mais é necessário que te arranje um nome. Tenho pensado em muitos com insistência, persistido, acabando depois perdido num cansado desassossego. Faço ainda mais algumas tentativas. Ocorre-me chamar-te girassol. É uma bela flor, altaneira, com uma simplicidade grandiosa e parece-me também um bonito nome. Se seguir o sol nunca te perderei, nunca me faltarás, ter-te-ei sempre por perto. Como flor agrada-me, é de uma beleza consensual, de pétalas alegremente amarelas, de vestes elegantes e discretas, sem a fragrância explosiva da alta perfumaria. Não requer habitação cosmopolita, vive bem em sociedade, cresce espontânea ao ar livre, em terreno que tenha a humidade suficiente para a vida. É alegre mesmo quando solitária e a sua corola é sempre um sorriso largo e aberto, mesmo se se curva numa vénia elegante e delicada. É um símbolo de esperança e um sinal de concórdia, até quando ao fim do dia o sol se põe no horizonte e a noite envolve a última claridade do crepúsculo.

A história é real, impossivelmente real, com pessoas, coisas, ruas e cidades, por dentro e por fora. Com a vida do dia-a-dia, com horários para cumprir, horas para as refeições, tempos para descanso, noites para que as estrelas possam brilhar. E apesar de tudo é um realismo mágico que não dá para entender, que nenhuma razão explica, que nenhum raciocínio justifica. Como se compreende, senão por magia, que sempre tenham estado juntas pessoas tão desconhecidas, nunca vistas, sem nenhuma possibilidade de se poderem ter pensado. E que, apesar de todas as impossibilidades, sempre se entenderam sem o saberem, sem gestos e sem palavras, sem divergências nem desentendimentos. Como caminharam sempre lado a lado, de mão dada, seguindo uma vida comum e única, sem espaço que lhes pertencesse e onde estivessem. Que mais do que juntas sempre foram só uma, como se assim tivessem crescido, com um só sonho e um único destino. A mesma cidade mágica, só existente na fertilidade da imaginação e nos antigos contos de fadas que viviam em castelos isolados no píncaro dos montes.

Cinquenta anos de solidão não dão para contar a história de Garcia Márquez, mas dão para atravessar noites em claro, entrar numa colmeia, procurar pela rainha, não a encontrar. Saltar por sobre as nuvens, abrir oceanos, tentar descobertas, desenhar a rosa dos ventos e continuar sem encontrar norte. Construir caravelas, navegar pela madrugada até à terra fria, enregelar, abrir os olhos no escuro. Sentir o enxame reunido por cima do sonho, escalar promontórios, não saber como comunicar, não haver informação disponível depois da linha quebrada. Acreditar que há uma nova vida em cada manhã, ter esperança apesar do desconsolo. Saber que haverá sempre um momento encantado, enfeitado com fitas e com estrelas tatuadas sobre o coração. Extasiar-se como se tudo fosse ainda ontem, dois olhares e nenhuma palavra, sem distância nem interrupção. Ter o mundo aos pés, agarrá-lo, não deixar que se perca mais.

2 de abril de 2024

Mensagem de Jesus depois da Páscoa

Como a vida acelera e como o tempo passa depressa. Ainda quase ontem era Natal e eu, menino, nas mãos do prior, estendia o pezinho ao beijo devoto dos fiéis na nave da igreja. E entretanto eis-me com trinta e três anos, mais todos os das celebrações já decorridas, depois da preparação recatada da quaresma e da travessia dolorosa da semana santa, aqui de novo, ressuscitado, precisado de algum descanso para recobrar energias e abalançar-me a mais um recomeço. Tendo de desculpar-me pelo silêncio em que me mantive, encarcerado no silêncio da sacristia, esperando que chegasse o equinócio da Primavera, a lua cheia e o primeiro domingo depois dela.

Foi farta a última ceia, na quinta-feira santa. Comeu-se, bebeu-se e soltou-se a língua a quase todos os que se sentavam à mesa. Tem muitas vezes esse efeito o uso imoderado da bebida, revelando aquilo que a dissimulação conseguiu ocultar durante a longa caminhada. Confirmaram-se os bons amigos, revelaram-se os que me iludiam e que acabaram pior trair-me a coberto de uma falsa e prolongada lealdade. Foi de jejum e recolhimento a sexta-feira da paixão, sem gestos e sem palavras, meditando sobre os excessos da véspera, levando-me ao calvário e à crucificação. Pode não ser um destino que se segue mas apenas uma missão que me foi atribuída e que se cumpre.

Foi de aleluia e ressurreição o sábado e de celebração o domingo. Aquele primeiro domingo depois da lua cheia que houve após o equinócio, que nos levou a reunir de novo, a exteriorizar uma incontida alegria até ali amordaçada. E que me permitiu ir pelas ruas fora, visitar a casa de cada um, compartilhar do seu alimento e do seu vinho, aceitar o seu contributo, registar as suas queixas e os seus anseios. Sempre à espera de chegar à tua morada, de ter-te à porta aguardando a minha chegada, de sentir o fogo cruzado do teu olhar doce e macio a demorar-se no meu peito e a ficar, de todo incapaz de ir-se embora. E chegar cansado ao fim da jornada, carregado de oferendas, pleno de promessas, cheio de convicções e de certezas. Para manter acesa esta chama que arde no meu peito.

29 de março de 2024

O novo governo

Pronto, aí está o novo governo, anunciado na quinta-feira santa, ao arriar da bandeira no quartel de Santo Ovídio. Recolhe-se de seguida, para as solenidades e celebrações da Páscoa. Desde logo hoje, sexta-feira santa, para a abstinência e o cumprimento de um rigoroso dia de jejum. Depois, no sábado, para a exultação da ressurreição e para a alegria da aleluia. Domingo para a reunião familiar na ida à missa e à volta da mesa, para ataque ao cabrito assado no forno e aos grelos a que as geadas de Março têm emprestado mais apetecível frescura. Depois, circunspecto e grave, na segunda-feira, para atender o compasso, deixar o óbolo e distribuir confeitos pelas crianças da rua. Finalmente, na terça-feira de pascoela, a bênção papal e o autógrafo para memória futura.

Podem, desde já, a IL e o senhor Rocha da retrosaria, distribuir aplausos e espalhar encómios. Ainda o governo não tomou posse e já conseguiu fazer regressar ao torrão pátrio dois esforçados emigrantes que há mais de uma dezena de anos mourejam pelos bares de Estrasburgo e pelas sombrias ruas de Bruxelas. Não se eximindo sequer ao sacrifício de, aos fins de semana, virem ao cafezinho a Nevogilde e à eucaristia à Sé de Braga, viajando em classe executiva para recuperação da TAP e progresso do país. Descansem em paz o senhor D. Afonso Henriques e o Papa Alexandre III: Portugal existe, Portugal está salvo.